A grande dificuldade para se pensar a Idade Média é olhá-la com a visão de mundo que temos hoje. Segundo duas especialistas do período, o melhor não é buscar similaridades com o presente, mas pensar que aquele mundo era diferente. Não havia um conceito de democracia e a população não se identificava como nação, termo que, na época, era usado para denominar grupos que frequentavam universidades. Também não existia patriotismo ou vínculo com a terra: o povo e os cavaleiros lutavam pelo seu senhor. E a palavra cultura tinha um sentido meramente agrícola, de cultivar a terra.
Documentário "A Idade Média Compreendida".parte 1
Documentário "A Idade Média Compreendida".parte 2
A Mulher Medieval
Documentário "A Idade Média Compreendida".parte 3
A Inquisição
“A cultura medieval não pode ser avaliada pelos critérios que aplicamos à nossa”, resume a historiadora Néri de Barros Almeida, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela destaca que, na Idade Média, o poder estava atrelado à ideia de evolução espiritual. “O poder na Idade Média se declara responsável pelo progresso espiritual daqueles que lhe estão submetidos. Na ideologia política dominante de então, não faz parte das atribuições de governança a orientação do progresso cultural da sociedade como o entendemos, ligado, por exemplo, a um sistema universal de ensino”, diz. A educação cabia à Igreja, que também se ocupava do cuidado das almas.
Na maioria das vezes, razão e fé estavam entrelaçadas. “Pode até haver uma distinção entre as duas no sentido de considerar a razão teológica e a razão empírica, ou seja, um conhecimento empírico de mundo distinto do conhecimento teológico de mundo”, afirma Néri.
Peste e guerra
Esse período de mil anos (476-1453), que vai da queda do Império Romano à conquista de Constantinopla pelo Império Otomano, é marcado pelo domínio da Igreja e tido por muitos como uma “Idade das Trevas”. Uma visão simplista: como existem mais documentos que retratam o fim do medievo, por volta dos séculos 14 e 15, o que mais se perpetuou foram as lembranças da peste negra, da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), da queda de Constantinopla e do Cisma do Ocidente (entre os século 14 e 15, quando o mundo cristão chegou a ter três papas).
“O que aconteceu no final [da Idade Média] foi realmente horrível. Dizem que a peste negra ceifou dois terços da população de Paris. Parece um exagero, mas vemos que foi avassaladora. O que não dá é reduzir o período a isso”, afirma a historiadora Marcella Lopes Guimarães, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Esquece-se, por exemplo, que na Idade Média surgiram as universidades e a imprensa. Além disso, foi um período de produção cultural bastante diversificada: a arquitetura gótica, que levava as catedrais às alturas; poemas de amor que animavam romarias e namoros; e peças de teatro apresentadas em vilas e castelos.
A novela anônima Sir Gawain e o Cavaleiro Verde é do medievo, assim como várias outras chamadas de cavalaria, como as escritas sobre a Távola Redonda, o Ciclo Arturiano e o Santo Graal. “Todos conheciam poesia. Mas a sua leitura era pública e não privada, com um livro na mão no próprio quarto”, explica Marcella. “A Idade Média é muito mais oral e gestual, até porque a maioria das pessoas, nobres ou não, não sabia ler.”
Leigos
E não eram apenas as pessoas da Igreja que produziam cultura: as monarquias que se formavam precisavam de médicos, advogados e notários e tiveram indivíduos que trabalharam na corte e escreveram peças, romances e poemas, sem pertencerem necessariamente ao clero. “Havia também clérigos que viviam nas cortes [alguns gostavam mais de estar ali do que nas igrejas] e produziam crônicas e novelas de cavalaria, e que tinham o amor no centro das preocupações”, diz Marcella. “E olha que não era o amor religioso, era amor homem e mulher, o ‘amor profano’.”
Há também a produção da Falsafa, da filosofia árabe, que está ligada ao Islamismo e não ao Cristianismo. Eles traduziram a filosofia de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C) muito antes do Renascimento. “Avicena foi um filósofo muçulmano cujas obras foram estudadas durante a época moderna nas universidades de Medicina”, lembra Marcella.
“A produção não é voltada para a Igreja, mas produzida por ela”, recorda Néri Barros de Almeida. A Igreja toma as rédeas dessa cultura por ter mais condições materiais. Hoje, boa parte da produção cultural tem a ajuda dos poderes públicos para sua preservação. “Na Idade Média esse papel é desempenhado pela Igreja que, evidentemente, como instituição religiosa, tem interesses bem diferentes da política cultural do estado laico moderno”, diz a historiadora da Unicamp.
Isso não quer dizer, segundo a historiadora, que a Igreja tenha monopolizado a cultura ou sufocado as formas de expressão. “Significa dizer que a parte da cultura global que é alvo de ações que visam sua preservação é justamente aquela relacionada às elites letradas, em especial à Igreja. Hoje a preservação cultural também passa pela deliberação das elites, mais próximas ao poder.”